Medo. Sim, medo de começar as fabricações, são tão fáceis. Tira-se uma idéia de algum lugar, um sentimento de outra estante, amarra-se tudo com a ajuda das palavras (cadelas negras): e resulta que te amo. Total parcial: te amo. Total geral: te amo.
Agora estou sozinha em meu quarto, estou caindo nas artimanhas da escrita. Você falou também, ou eu mal compreendi? Leio. Leio e releio as suas correspondências, as cadelas negras vingam-se como podem, mordem-me debaixo da mesa. Deve dizer-se debaixo ou embaixo? Mordem de qualquer jeito. Por quê, por qué, pourquoi, why, warum, perchè este horror às cadelas negras? Olhem-nas aí, neste poema de Mashe, convertidas em abelhas. E aí, em dois versos de Octavio Paz, pernas do sol, recintos do verão.
Curioso, muito curioso que Puttenham sentisse as palavras como se fossem criaturas com vida própria. Também eu, por vezes, penso estar engendrando rios de formigas ferozes, cadelas negras, que comerão o mundo. Tenho medo desse proxenetismo, de tinta e de vozes, mar de línguas lambendo o cu do mundo.
Em guerra contra a palavra! Em guerra, embora assim sendo tenha que renunciar à inteligência. Fiquemos no mero pedido de batatas fritas e nos telegramas de Reuter, nas cartas de meu irmão e nos diálogos do cinema! Conceber uma raça que se manifeste pelo desenho, pela dança, pelo macramé ou por uma mímica abstrata! Seria possível evitar as conotações, raiz de engano? Honneur des hommes etc. Sim, mas uma honra que se desonra em cada frase, como um bordel de virgens, se a coisa fosse possível.
Tu, que tanto gostas de usar o verbo amar, e vais deixando-o cair sobre os pratos, os lençóis, o banco do teu carro. E eu, sempre encostando o dedo pálido em tua boca. Doador de infinito, eu não sei tomar, perdoa-me. Tu pareces oferecer-me uma maçã e eu deixei os dentes sobre a mesa-de-cabeceira. Sei, eu sei, eu tenho certeza que alguma beleza dorme em nós, e que seria suficiente submergir-nos juntos num copo d’água, como uma flor japonesa, para que, pouco a pouco, começassem a brotar pétalas coloridas. E não o faço.
E não me olhes com esses olhos de pássaro. Para ti a operação do amor é muito fácil, e é justamente por isso que tu ficarás curado antes de mim, é claro que tu depressa te curarás, porque vives na saúde, depois de mim será outra qualquer, isso tal como se renovam as modas, isso tal como Susanne intenta exibir, a cada festa, um novo vestido.
Amor meu, escuta. Não te amo apenas por ti, nem por mim, embora o ame por esses dois motivos juntos. Tampouco te amo somente porque o sangue me faça te amar. Amo-te ainda porque tu não és meu, porque tu estás do outro lado, deste lado para onde me convidas a saltar, mas não, não posso dar o salto, não posso te alcançar, não posso passar pra lá do teu corpo, do teu riso.
Do amor à filosofia? Estou realmente muito lúcida, o que me assusta.
Está bem. Liberto as cadelas à rua:
Era tarde mas era a hora; era a estação fria do ano mas fazia calor; era o Verbo (no princípio), e uma mulher que pensava ser bem mulher. Que burrice infinita, minha mãe! E nós dois trocamos meia dúzias de palavras e fomos tomar um copo de pelure d’oignon num café de Sèvre-Babylone.
Olhávamos um para o outro e penso que já começávamos a nos desejar, e sucedeu um diálogo memorável, absolutamente memorável, absolutamente recoberto de mal-entendidos, de desajustes que se solucionavam em vagos silêncios, olhando um para o outro sem sorrir, acendíamos gauloises na ponta do cigarro um do outro e vice-e-versa, esfregávamo-nos com os olhos, estávamos tão de acordo com tudo que era até uma vergonha, a cidade dançava lá fora, nos esperando, tínhamos os dois acabado de desembarcar, começávamos a viver, tudo estava ali, sem nome e sem história.
Quando nos despedimos, éramos como duas crianças que tinham se tornado estrepitosamente amigas numa festa de aniversário, e que continuavam olhando uma para a outra enquanto os pais as puxavam pelas mãos, arrastando-as para a rua, e isso é uma dor doce e uma esperança, e sabe-se que uma se chama Fred e a outra Lulu...
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