I
Agora: o silêncio, o eco das suas palavras.
Você, doloridamente linda de pé,
frente à janela,
e logo depois sentada na beira da cama,
com um copo cheio na mão direita,
e uma garrafa de rum entre os pés
per-fei-tos.
Uma urgência doida de
te dizer a coisa certa, na hora certa,
mas a sempre-alternativa de, ao cruzar o hall,
te oferecer simplesmente um olá
e a tal expressão de abismo.
Me lanço.
Os seus olhinhos sedutores,
piscadelas infantis e,
logo depois, surpreendentemente,
um não-sei-quê contrariado.
II
Eu esperei por você a noite inteira,
na escadaria do hotel,
oferecendo cigarros às recepcionistas,
enquanto você penteava a franja
ou escolhia um perfume pra me incendiar seu cheiro
e a noite.
Subi de elevador,
troquei informações sobre o tempo com o ascensorista,
o mundo girava dentro do meu estômago,
os minutos feito flechas,
e eu me percebo diante da tua imagem adorada,
recostada no batente da porta,
aberta.
Reclamo,
reclamo sim, mas sem muita vontade,
só pra você se sentir importante
e revidar com beijos mais doces,
a torto e a direito,
quase sempre sem muito jeito,
indelicada,
dois dedos de bebida, um cubo de gelo,
uma história nova.
Estúpida.
Eu já ouvi Memé contar a mesma história,
numa interpretação bem mais suada.
Com você, na sua voz,
nas sílabas que você troca,
nos clichês antiquados de revista feminina...
fica tudo sempre mais claramente dispensável,
e eu rio e sorrio e invento
pra mim e pra você
exclamações em forma de eufemismos amorosos.
Quem sabe assim você percebe?
(Embora o provável é que nem assim,
nem assim,
você entenda o quão fino é o meu pensar,
o quão elegantemente terno é o meu desejo.)
E contudo não importa,
já que te perdôo.
Te lambo as orelhas pra te provar,
pra me provar que te quero muito.
Que você é tão boba quanto imensamente linda,
e que por causa disso
(das duas coisas)
eu posso cuidar de você pra sempre.
III
Você diz que vai mudar de roupa,
não, você me diz que vai é mudar de vida,
e eu desconfio que é porque eu quase vivo uma vida que você nem sonha em.
E por vezes é isso que
sei lá por que diabos
me faz ter fé em você...
Me faz supor que você está longe,
mas me acena com uma cenoura na mão,
e eu vou aos solavancos
sem saber que no fundo,
de uma maneira ou de outra,
eu estou sempre caminhando, caminhando
é na sua direção;
que em breve vou poder te erguer num abraço de cinema;
que você enfim vai me dar a chance de te dizer:
“É tão bom te ver, meu amor, minha anja, minha margarida despetalada.”
IV
Ou não é nada disso;
gira a roda da fortuna e eu apostei no vermelho,
quando a vez, a vez, a vez era “negra”.
Mas que bobagem, amor!
Eu vou ouvindo suas superficialidades literárias e dá nisso!
Eu, que sou herdeiro de Mallarmé,
discípulo de Gottfried Benn!
Te ouvir falar tão displicentemente
de assuntos tão caros me deixa louco de ódio das minhas coisas,
das coisas que eu quase tenho,
e que não têm valor pra você.
Então me aproximo de você,
da sua existência boba,
pra te cheirar a boca,
te apertar com força,
sorrir e suspirar um amor
que eu não carrego em mim desde que a velha partiu pra Chade
com as caixinhas de música
e meu maior dos segredos.
E daí que me perco:
você me segura pela mão
e desce a caracol sorrindo,
invade a avenida central numa serenidade,
numa placidez,
numa despreocupação
mais que absolutamente convencionais...
enquanto me lembro da velha
e penso nela hoje pelas ruas de ladrilhos sextavados;
ou penso nela na minha cama, há alguns bons anos,
contando dos amores passados.
Recordo o meu ciúme
e os crimes que deixei de cometer.
E agora te tenho dançando logo à minha frente,
entre as moças mais feias do bairro;
tenho as suas pernas lisinhas bem firmes
dançando quase sem movimento,
tua coluna erguida, mais um copo, um pedido.
Então te julgo pobre e frouxa,
me ocorre te acertar os botões da blusa
e te levar até a estação,
de repente partir com você sem malas,
sem bilhetes,
te ensinar como preencher a sua vida completa.
Só que você
de uma forma ou de outra
está sempre completa
alinhada e viva e brilhante
linda, linda, linda,
mesmo quando eu exibo um italiano
e às doze na praça reluz em meu dedo mínimo a ametista.
V
Eu vou te abandonar.
Eu sei que vou seguir o fluxo convencional...
ligando os pontinhos numerados
até formar o desenho do urso no monociclo.
Tornar-me adulto, e colorir.
Ficar bem velho, e colar lantejoulas
nos sapatos e na gravatinha borboleta.
Quem sabe um dia eu não te envio um postal?
Embora eu saiba que o calor de Acapulco
acabaria é por me insuflar uma dúzia de poemas
ou um dever de mandar uns trocados pra bancar os gastos com um bebê nosso.
Isso.
Eu bem longe,
recitando versos búlgaros na cátedra,
e você com seu mundinho de peixes laminados
e gotas de orvalho que são como cristais.
Não; você sobretudo com um filho forte...
um menino sentado de calças curtas na calçada em frente,
que vai ganhar uma bola e pedir uma bicicleta
– antes isso do que esse seu conformismo
que é quase idêntico ao meu
(ainda que o seu seja mais leve,
o meu um dia, quem sabe um dia?,
meu bem,
vai ser bem mais colorido).
VI
Te olho, te olho, te olho.
Te prendo nas minhas retinas
pra não te esquecer nunca mais,
e você nem se preocupa em observar as pessoas ao redor,
um velho barrigudo e solitário,
quatro putas (uma delas tem bigode),
um garoto de recados alucinógenos,
a dona de peitões e lábios pretos.
No fundo sei que você não olha nada,
você não pensa nada,
você lembra umas férias boas
que passou quando tinha doze anos e um tanto menos de beleza;
mas brincava com os primos entre girassóis e...
Que importa?!
Você finge que não me vê,
mas logo diz que
até o final do ano
eu hei de conhecer uma mulher
boa pra mim.
Diz isso sem me pegar pela mão
nem avaliar minha linha da vida.
E eu concordo,
porque no fundo sei bem que espero
uma mulher que me prepare biscoitinhos amanteigados
e me fale de Debussy,
de Le promenoir de deux amants.
E logo você se volta pra mim
com um sorriso arrasador,
com um jeito que é quase descaso,
mas que interpreto (sabiamente?)
como um querer maquilado.
Você me anuncia que ela virá do estrangeiro,
montada numa mula premiada,
trazendo um tesouro sonorense
ou me carregando pra onde se possa viver gordo e farto.
E eu, que nem supunha
um conhecimento seu sobre Cocanha ou Eldorados,
me enfeito e alimento com as suas surpresas;
e te beijo em silêncio e desejo te ver amanhã
e todos os dias da minha vida
– te ver sempre assim tão linda de azul,
ou de bege,
branco,
quem sabe em listras coloridas.
VII
E cai a hora da verdade,
a hora sombria,
nosso amor desata. Você me escapa.
Queria eu que não me deixasse partir.
Mas não:
me apresenta doze irmãs
ainda mais lindas e mais vivas
do que você mesma,
me morde o pescoço pra deixar marcas
(sem nunca deixar marcas),
me envia mensagens científicas
sobre as fases da lua,
mensagens fraternais
sobre uma chuva doida que você tomou na volta do trabalho,
e escapa.
Cansou de sorrir
e dissimular um amor de verdade.
Não aceita perder,
e perdeu
(está claro,
Escancarado
que você perdeu o fio da meada
e na última cartada),
então me culpa, me pune,
fecha a cara e cruza a rua;
se tranca do outro lado.
Não me deixa mais saber
o que comeu no café da manhã,
o que mamãe te escreveu na última carta,
ou a mais nova invenção mecânica do seu pai.
Me abandona num vazio,
me deixa perdido entre o tapete e o pé da cama,
primeiro lambendo seus pulsos,
depois falando sozinho,
tecendo associações despropositadas,
rindo delas,
um sorriso amarelo
só que em geral muito sincero;
me deixa pra cá,
confidenciando obscenidades com o vizinho marinheiro
só preu me sentir mais homem e mais sério,
roendo uma dor funda,
só que contornável;
sentindo sua falta miúda
e a certeza de que se você estivesse aqui
gostaria de aprender comigo
e aprenderia a gostar
e a me respeitar
e a desejar viver comigo.
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